segunda-feira, 19 de agosto de 2013

É assim o mar alto, em noites de pouca lua; uma escuridão que se mexe e dança em nosso redor, quebrada apenas pelo verde do fósforo e pela brancura da espuma das ondas  - muralhas liquidas, que a imaginação torna ainda maiores, repetindo-se até ao infinito num carrocel de sobe e desce, sobe e desce..lá no alto um céu que já não sonhamos existir, ofuscados pelas luzes da civilização, feito de estrelas e galáxias e constelações, rompido ocasionalmente por uma estrela cadente que nos apressamos a apontar aos outros, como miúdos encantados. Mas também é dura a noite no mar, quartos que duram horas, molhados e sonolentos e entorpecidos, conscientes dos mil perigos que nos impedem de cair no sono tentador - navios cegos, contentores perdidos, avarias várias. É ali, sozinhos mesmo que com o camarada de serviço, que tomamos consciência do quão pequenos somos realmente, cinco homens em 12 metros de barco, no mais profundo dos oceanos. E pensamos para nós mesmos o que diabos nos leva a fazer isto, a passar dias rodeados de água e mais água, sem dormir, a comer o possível, a fazer xixi num angulo de 30º (imagine-se o resto), a andar aos tombos, a colecionar nódoas negras, a enfrentar riscos e esforços e toda a força dos elementos, apenas para dizer: Eu fiz. E pensamos nos navegadores de antanho, sem noção e sem tecnologia e percebemos a real extensão dos seus feitos e da sua coragem. Eu fiz. O orgulho é real e sentido. Mesmo que tenha vomitado as tripas no primeiro dia e torcido o joelho no ultimo, fiz. E voltarei a fazer.
"Para baixo é a descer". Pois, pensei, tens razão, mesmo que o Universo não tenha acima e abaixo, pensamos no Sul como ficando abaixo do Norte e assim o caminho marítimo para a Madeira é....a descer. La Palisse não diria melhor. E descemos, durante 3,5 dias, com vento de feição e mar moderado, que nos permitiu um optimismo enganador, pano todo desfraldado, velocidade razoável, o robusto Boa Esperança a navegar quase direito, até refeições cozinhadas e momentos de relaxe ao Sol entrecortados de graçolas e cerveja fresca, o mar verde, verde o céu azul, azul, o suave balanço das ondas, os golfinhos a perseguirem-nos, a ultrapassar-nos em razias prateadas, reagindo aos nossos gritos e entusiasmo com saltos e piruetas, salpicos de água salgada na cara -  "parece um anuncio do Old Spice", alguém disse e todos se riram, cinco homens em 12 metros de barco, no mais profundo dos oceanos.
"Terra à vista". Nunca o Porto Santo pareceu tão apelativo. Chegáramos. A primeira parte da jornada estava cumprida. A mais fácil. do Porto Santo para a Madeira com as ondas a altearem-se e o vento a soprar mais forte, ficou o aviso de que não seriam só facilidades e odes a anúncios fora de moda. Faltava o mais difícil, o regresso.
Se para baixo é a descer, pois que para cima...sobe-se. Contra o vento para começar, numa bolina constante que inclina o barco, com emoção e sensação de velocidade, no género desporto radical, a vela como ela se imagina e quer. A não ser que dure dias e dias, sem intervalo. Imagine-se o que é viver, dormir, fazer as necessidades, andar do ponto A para o ponto B, fazer as manobras necessárias num veleiro, num plano inclinado que salta como um cabrito montês de vaga em vaga...pobre Henrique, que se esqueceu de se prender durante o sono e saltou do beliche a 100 à hora, passando em frente dos nossos olhos como um cartoon de mau gosto.
E o mar agigantou-se, o verde e o azul tornaram-se cinzentos, o vento soprou num prenuncio da tempestade no nosso caminho que pensáramos poder enganar. Erro. As ondas que embalavam, tornaram-se montanhas que ameaçavam, e quando a noite se seguiu ao dia, quando fui despertado do sonho breve, pelos gritos dos camaradas  pelo ranger e dor do Boa Esperança ferido, percebi que a batalha estava perdida. Nada de grave portanto, mas o suficiente para nos fazer arrepiar caminho em direção ao Porto Santo, o porto seguro, longe mas mais perto que tudo o resto. Chegámos de madrugada, esgotados, encharcados até aos ossos, feridos no orgulho e na alma. A viagem, esta, terminou ali. Ficam as histórias por contar e esta cronica que quis partilhar. O mar aqui tão perto chama por mim e eu a ele voltarei. Até breve.

  A humanidade já passou por muitas ameaças - não poucas das quais, iguais à que enfrentamos hoje. Epidemias e pandemias são recorrentes na ...