terça-feira, 20 de setembro de 2011

Estórias 2 / Cair do pedestal

Bagdad, meados de Abril de 2003  - soprava um vento quente e poirento, de mau agoiro, na capital devastada, por aqueles dias e nos hoteis,, onde a "press" se acumulava, aguardava-se em expectativa o próximo movimento das partes em contenda. Praticamente todos os iraquianos tinham desaparecido da zona, deixando-nos em auto gestão e, pela parte que me toca, com uma estadia gratuita no Sheraton. Os americanos estavam ali, ao virar da esquina, e com todas as noticias de pilhagens e anarquia generalizada entre a população, não faltava quem rezasse pela sua chegada. Eu havia dias que percorria a cidade, num discreto jipe encarnado vivo, decorado com uma gigante bandeira francesa e conduzido por um ex-major legionário, um louco meio soldado, meio editor de uma suposta revista de assuntos militares, mas que sabia como ninguém os procedimentos correctos para nos deslocarmos em terreno tão perigoso. Com ele vivi várias histórias entre o horror e o humor, mas essas ficam para outras prosas. Esta é sobre uma estátua. Uma estátua gigante de um ditador de bigodes, de nome Saddam Hussein, bem no meio da Praça do Paraíso, ali a dois passos dos hotéis.
No dia em que finalmente os camuflados americanos deram entrada no que é hoje a Zona Verde, formou-se um circo mediático à sua volta (relembro que estavam pelo menos 500 jornalistas ali ao lado, sem contar com os que vinham embeed..) que teve o seu apogeu no derrubar da estátua citada - o momento que simboliza a queda do regime e o fim da guerra oficial, imortalizado em fotos e videos de todo o mundo e em que este vosso humilde escriba teve (pasmem agora) um papel fundamental. Pois é, esta vocês não sabiam, pois não? Vá, eu conto: durante a manhã já um monte de iraquianos, liderados pelo Schwarzenegger local, tinham tentado tudo, de chinelada a marretada, para derrubar o Saddam de bronze, que nem buliu. Finalmente derrotados viram-se obrigados a pedir ajuda ao US Army, que não se fez rogado e  avançou um monstro de aço, meio tanque, meio escavadora para tomar conta da tarefa. 1º filme: todos os fotógrafos e cameras pensaram que o melhor local para captar imagens seria precisamente em cima da coisa e num instante pimba: 50 jornalistas acumulados lá no alto. Não foi preciso muito para que o comandante do veículo corresse com toda a gente. Esqueceu-se de um pormenor - os portugueses. expeditos, eu e o Nuno Patricio, o camera da RTP, demos a volta e subimos pelo outro lado. Ao ver-nos de novo o jovem tenente só foi capaz de se rir. Tinhamos ganho aquele round.
2º filme: os americas decidiram enrolar uma bandeira iraquiana em redor da cabeça do Saddam, talvez para aumentar o simbolismo da situação. Mas foi aqui que o ambiente mudou. Os locais ali presentes pararam a festa e ficaram numa atitude tensa, com sobrolhos carregados. Sem reparar os militares continuaram a puxar a estátua. De repente eis que alguém me chama. Olho para baixo e vejo dois iraquianos que eu conhecia do meu hotel, onde eram funcionários. De um até me tinha tornado mais ou menos amigo e tido, pelo menos até desaparecer com todos os outros, algumas conversas interessantes. Mas agora reaparecia ali, naquele momento de grande drama e logo a procurar por mim. Percebi que era grave pela sua agitação e aproximei-me da borda do veículo para perceber o que queria. era mais o que não queria. ele e todos os outros - não queriam a sua bandeira no chão, arrastada pelos americas e pelo ditador odiado. Apressei-me a fazer chegar a mensagem ao tenente, antes que fosse tarde. Percebeu de imediato e tomou providências para tirar a bandeira. A festa voltou. Eu tornei me alvo de olhares reconhecidos e palavras de gratidão. Por um momento fiz parte da História,

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Estórias 1

Às vezes lembram-me estórias de coisas passadas. Coisas que eu já quase nem acredito que vivi, apenas as fotos envelhecidas a ligarem-nas à (minha) realidade. Dizem-me que devia passa-las a livro. Talvez. Talvez um dia. Por enquanto vou lembrando-as aqui e ali, ao sabor das memórias que surgem sem aviso. Como aquele voo entre Nairobi e as montanhas Nuba, bem no coração do Sudão. Vindo do Sul desse país, então ainda dividido "apenas" por uma guerra civil longa de 40 anos, depois de duas semanas duras entre os rebeldes do SPLM, descansava agora na penumbra do meu quarto confortável, num dos melhores hotéis da capital queniana, enquanto pensava em ir ao Norte sudanês em busca da outra metade da reportagem planeada. Mas o destino tinha outros planos. Logo nessa noite o encontro com uma das personagens mais extraordinárias e intensas da minha vida, levou-me a alterar planos feitos cuidadosamente e a embarcar numa aventura diferente. Malcolm Max Cassis, bispo católico, originário das Nuba, o território mais isolado do planeta, queria lá ir passar o Natal com um avião carregado de presentes – comida, medicamentos e alfaias agrícolas. E convidou-me. E eu aceitei. Dois dias depois, embarquei no voo da minha vida – horas esquecidas, num DC-3 com 50 anos, piloto colombiano e GPS colado com fita-cola ao tejadilho, num voejo proibido sobre território inimigo e com consequências imprevisíveis. O velho avião estremecia e roncava e fumegava, arrastando-se penosamente em direcção ao seu destino longínquo, enquanto o bispo Cassis, imperturbável, rezava o terço, sentado na única cadeira destinada aos passageiros. Eu esparramado em cima de caixas de medicamentos, só pensava na possibilidade de encontrarmos a força aérea norte-sudanesa de mau humor. Mas não. Após muito, mas muito tempo, a nossa passarola lá começa a descer. No horizonte desenhava-se o contorno maçico da grande cadeia montanhosa das Nuba. A aterrissagem decorreu com a calma relativa de um pato de 40 quilos a pousar num alguidar com água, mas depois de 5 minutos de saltos e ressaltos e imprecações e coisas pelo ar lá parámos. Ufffas, palmas de alivio, parabéns e palmadas nas costas, a salvo finalmente. Seria? Não. Pelo escotilha redonda espiei uma quantidade de gente fardada a correr em direcção a nós, a brandir armas e a gritar. “Que amigáveis, vem-nos saudar mesmo efusivamente”, ainda pensei, antes de ouvir os primeiros disparos. Mas só quando o nosso piloto colombiano, em versão rally, pôs o velho Dakota a fazer um pião e a acelerar o mais rápido que podia pista fora é que eu percebi – tínhamos aterrado no lado errado da montanha, no aeródromo controlado pelas forças governamentais. A nossa retirada muito pouco digna, acompanhada de muito tiroteio, sorrisos amarelos e ainda mais imprecações foi em tudo ignorada pelo bispo, que nem um bocejo se dignou a fazer. Apenas passados uns minutos, já bem alto e longe do perigo, olhou para mim mansamente, fez o sorriso mais aberto do mundo e disse: “bem vindo à minha t
erra”.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Embarco para a Madeira. Já passei pelos aeroportos, e controles respectivos, dos sitios mais marados do mundo, já me revistaram enquanto me apontaram armas, já me ameaçaram, insinuaram, insultaram, já me tentaram roubar, extorquir, cilindrar...faz parte do encanto das viagens, o imprevisto, a aventura, o inesperado, o cheirinho a perigo...mas para a Madeira Senhor. rapazinhos e rapazinhas da Securitas, uniforme amarelo a condizer com o sorriso e a cara de pau, pequeno poder em acção, muita frustração reprimida - "este frasco tem 125 ml, e só pode levar até 100 ml..." bem tento argumentar que o raio do frasco está praticamente vazio (vê-se, é transparente..) que é só after-shave, pode cheirar, usar...nada. imperturbável na sua acção de evitar a entrada de perigosos terroristas armados de perfumaria, no avião com o destino sempre delicado e perigoso do Funchal, ainda acrescenta - "e este também não". Este é um creme para a barba, como se sabe material muito usado no fabrico de bombas. A Madeira é um potencial alvo para atentados, todos sabemos. Todos os anos, milhares de turistas de camisa às flores e after-shaves explosivos tentam sabotar o Carnaval do João. Calhei eu na rifa. Não há argumento que resista à imbecilidade demolidora de quem só cumpre ordens sem questionar. E lá voltei eu para trás, despachei o saquinho de mão no porão e voltei para a fila, agora 20 minutos maior, para de novo ser revistado e controlado, pela mesmissima figura, quem nem um sorriso de ironia conseguiu fazer. Hargggggggggggggggggg 

  A humanidade já passou por muitas ameaças - não poucas das quais, iguais à que enfrentamos hoje. Epidemias e pandemias são recorrentes na ...