quarta-feira, 24 de agosto de 2011


“O Bug”

Algo está errado. No mundo, na vida, nas pessoas, eu sei lá. Mas algo está mesmo muito errado. O mundo não acabou e eu não vi o bug (mas que ele existe, existe) e para falar francamente também não vi mais nada de especialmente invulgar para além do que é  normal numa passagem de ano. Ainda esperei que aparecessem uns personagens de branco e longas barbas a apregoar o fim dos tempos mas não. Nem sequer uma avaria no telefone, ou um contacto com extra terrestes, ou neve no Alentejo. Nada a anunciar que a partir de agora iria ser tudo melhor, ou pior, ou diferente.  Tudo normal. Tudo igual a si próprio.
 E assim entramos no 2000 como saímos de 1999, com os mesmos problemas, as mesmas angústias e as mesmas esperanças. No fundo, se bem que já soubesse que iria ser assim, alimentava a secreta esperança  que de repente, por obra e graça de uma qualquer entidade divina, o mundo passasse a ser um lugar diferente, talvez sem impunidade e sem miséria.
 Em Lisboa moro perto de um local tristemente célebre conhecido pelo nome de Casal Ventoso. Todos os dias dezenas de milhares de contos são ali gerados através do sacrifício de milhares de seres humanos. As suas  vidas desperdiçadas alimentam gordas contas bancárias que são movimentadas por traficantes, políticos, polícias, militares, comerciantes, banqueiros  e até religiosos. Todos os dias a minha rua é percorrida nos dois sentidos, para baixo os que se vão fornecer, para cima os que já vêem aviados,  por estas almas andrajosas e perdidas, consumidas pela droga. Todos os dias ambulâncias passam em busca daqueles que sucumbiram ao seu poder. Sempre que uma ambulância passa há um cão, algures na rua, que uiva pressentindo a morte e a miséria.
 O tráfico é feito ás claras, com filas á porta dos dealers e pregoeiros que cantam as virtudes do seu produto. Dia e noite. Aqui e ali corpos jogados ao abandono e outros que para lá caminham faltando apenas encontrar a veia certa. Ou possível. O negócio é tão bom que alguns moradores do bairro alugam as casas aos dealers por quantias astronómicas. E para quem não conheça a zona sempre poderei dizer que as casas de um modo geral estão tão degradadas que não se distinguem das barracas que as rodeiam.
 Um dia deambulando por ali (faço-o sempre que preciso de “uma dose” de realidade ou sempre que começo a ver o mundo demasiado cor-de-rosa) ao virar a esquina ao fundo da minha rua, o que dá acesso ao Casal Ventoso propriamente dito, sou subitamente confrontado com uma visão dantesca; Qual filme de horror dezenas daquelas figuras condenadas vinham direitas a mim, sujas, miseráveis, trôpegas, empurradas por uma qualquer força que eu não conseguia entender, ocupando a rua toda, de lado a lado. A custo, depois de conseguir passar por eles, percebi. Uma rusga policial.
De vez em quando a policia vai por ali abaixo, fechando as vias de acesso e tentando mostrar serviço. Muito tempo antes de eles lá chegarem já os dealers avisados tomaram as suas precauções, fechando-se atrás de grossas portas chapeadas a aço, escondendo as provas do seu crime. O sistema de vigilância da zona é infalível e os vigias são pagos, em dinheiro ou “géneros”, a cerca de 30 contos por dia. Quando se ouvem os “uga”, “uga”(abreviatura de fuga) toda a gente em situação comprometedora desaparece no emaranhado labiríntico de ruas e ruelas ficando apenas os desgraçados mortos-vivos sem forças ou vontade para correrias. Esses, como aqueles que eu tinha visto, são escorraçados para fora da zona central do bairro, onde a maior parte da “actividade comercial” se dá, ficando á espera na periferia que a polícia se vá embora. Depois volta tudo á mesma.
Certo, eu sei que o nosso sistema legal (como os outros) têm algumas condicionantes, que as coisas não podem ser feitas de qualquer maneira, que não se pode simplesmente entrar por ali e prender toda a gente. È necessária prova, flagrante delito, eu sei lá. Também sei que por vezes os policias, talvez frustrados pela inutilidade dos seus esforços, se limitam a chatear toda a gente que lhes aparece, tenha ou não a ver com o assunto, e até a dar umas ocasionais porradas... 
Por outro lado acabar com o Casal Ventoso equivalia a perder de vista  os traficantes e consumidores que pelo menos ali estão relativamente controlados. E então qual será a solução? Qual a solução para acabar com um negócio de milhões e que mexe com tantos interesses? De certeza que não são debates na televisão protagonizados por algumas sumidades e doutores que analisam o problema de um ponto de vista académico e científico e que nunca na vida puseram os pés nos Casais ventosos que por aí existem. De vez em quando convidam um ex-toxicodependente para dar um ar mais realista à coisa esquecendo-se que nisto das drogas cada caso é um caso. Também não será de certeza a multiplicação de “centros de recuperação” mais ou menos dúbios e que, com algumas honrosas excepções, não passam de pura ilusão que absorvem tempo e dinheiro a quem neles acredita, para já não falar dos subsídios estatais pagos por todos nós.
 Não, eu não sei qual será a solução, apenas sei que ao fundo da minha rua mora a desgraça e a miséria e que algures na Colômbia ou noutra qualquer Colômbia mora um fulano de óculos escuros e roupa de marca, rodeado de riqueza e guarda-costas que exporta morte em pó em impunidade quase total e até com a conivência de entidades e personalidades insuspeitas. É que o apelo do dinheiro não perdoa. Pelo meio ainda existem agricultores pobres e gente que vive do que a terra dá e para quem a plantação de coca ou papoila é de certeza mais rentável do que o milho ou o arroz. E assim que se lixe a justiça e o bem-estar social. Vendemos as nossas almas, e as dos outros quando necessário, ao Deus Dólar (ou Marco, ou Libra, ou Escudo, tanto dá...) e quem vier a seguir que arrume a casa.
Onde está a justiça para onde pagamos impostos? Será que é só para alguns? Aqueles que não têm dinheiro ou que não pertencem a lobbys? Mas também que justiça se pode esperar de um sistema que deixa sem culpados a morte aflitiva e brutal de duas crianças sugadas por um tubo numa tarde de sol e piscina.
E entretanto o Casal Ventoso lá vai continuando á espera da tal entidade divina que se preste a vir cá abaixo resolver os males do mundo. Pode ser que seja para o ano. 
Esta crónica é dedicada ao Ricardo, meu amigo, morto aos 25 anos no Casal, devorado pela droga e pela incapacidade de viver nessa realidade suja que não queria e onde caiu sem que até hoje se percebam as razões.  

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